No final do ano passado, percebi que uma nova moradora se alojara em meu banheiro. Era uma aranha vermelha e não muito grande, do tamanho da cabeça de um parafuso, cor de ferrugem.
No início fiquei receosa, mas, após me certificar de que não era venenosa (google não mente, uai!), aceitei compartilhar o ambiente com a hóspede não convidada. Afinal, ela ficava quietinha em um ponto específico do teto, próximo à janela, e não me incomodava. Como eu também não pretendia mexer com ela, achei que pudéssemos conviver em paz.
E não é que me acostumei com a danadinha? Passava grande parte do banho observando-a, ora acompanhando seus gestos minúsculos, ora admirando o desenho formado pela delicada teia que a pequena aranha tecia, devagarinho.
Até que certo dia, ao cumprimentar minha hóspede (a essa altura, já quase da família), percebi que sua teia estava maior e mais forte. E havia uma formiga pendurada nela, como a ser içada, a meio caminho do teto.
Levei um susto. Meu impulso inicial foi tentar retirar a formiga da “armadilha”, mas eu não a alcançava (ter 1m60 não ajuda nessas horas). Já paralisada pelo pavor da cena, tentava organizar os pensamentos e as emoções, para encontrar outra forma de ajudar a formiga.
‘Mas até que ponto tenho o direito de intervir?’ - Pensei de relance, enquanto ainda olhava ao redor, em busca de algum objeto que prolongasse meu braço.
‘Parece cruel o que a aranha fez com a formiga. Mas, ao mesmo tempo, a aranha depende disso para viver. Eu retirar o alimento dela também não seria cruel?’ - Matutei, já menos determinada a encontrar o “aparato salvador”.
Enquanto minha mente fervilhava com o dilema ético, reparei que a formiga não se mexia. Só então me dei conta de que ela estava inerte desde que entrei no banheiro e a vi ali, pendurada.
‘Estaria viva ainda?’ - Pensei, enquanto ficava na ponta dos pés, para vê-la mais de perto. -
‘Meu socorro faria alguma diferença para ela? E para a aranha?’
Olhei pela última vez para aquela cena e liguei o chuveiro. Decidi que respeitaria o fluxo da vida. Não estava certa de que era a melhor escolha, mas optei por não fazer nada. Terminei meu banho e chorei, copiosamente.
Obviamente, o assunto virou pauta na terapia:
- Você se identificou com a formiga ou com a aranha? - Perguntou meu terapeuta, sem hesitar.
- Acho que me identifico com as duas - respondi ainda confusa, tentando racionalizar minhas emoções - É que, embora sofra pela formiga, reconheço o lugar da aranha e sei que ela também precisa se alimentar. Optei por deixar a vida seguir o seu curso, mas não foi uma decisão fácil e ainda não estou confortável com ela.
- A formiga integra um coletivo - continuou meu terapeuta - já a aranha é solitária. Você reparou que temos esses dois arquétipos em nós?
Suspirei, acompanhando o raciocínio. Então ele arrematou:
- Às vezes precisamos matar uma parte de nós (mesmo que doa) pra vida poder continuar. Mas isso não vai destruir o formigueiro…
Ele estava certo, eu carrego em mim a formiga e também a aranha. Todos nós carregamos.
Ao longo da vida frequentamos muitos “formigueiros” (familiares, profissionais e religiosos). E é importante que seja assim, pois precisamos aprender a conviver e a trabalhar juntos. Em alguns, somos acolhidos. Em outros, não somos muito compreendidos. E isso às vezes dói. Afinal, como seres sociáveis, buscamos pertencimento, aceitação e reconhecimento. Mas o formigueiro nem sempre está preparado para o que (ou quem) foge do padrão.
Por isso, de tempos em tempos, a gente precisa se perguntar se o padrão ainda nos preenche e realiza. Se a resposta for negativa, talvez seja a hora de nos desapegarmos da nossa formiga para alimentarmos o nosso lado aranha e, juntando os fios soltos, desenharmos no tear da vida a nossa própria teia.
Enquanto formiga, trabalhamos e colaboramos da melhor forma que podemos pelo formigueiro. Quando partimos, deixamos ali um pedaço de nós, do nosso coração e do nosso legado. E isso basta. Não importa se fomos aceitos ou acolhidos. Quando nos tornamos aranha, percebemos que a única coisa que de fato precisamos é que nossa “essência” seja aceita, reconhecida e valorizada por nós mesmos.
Mas como saber se é a hora de sacrificar a formiga operária (e as expectativas do formigueiro) para dar vida à aranha solitária (que, ao cuidar de si, contribui para o equilíbrio ambiental)?
Não há resposta certa, nem fórmula pronta. E dificilmente será uma escolha fácil. Mas haverá sinais. E o principal deles vem do coração. No fundo, a gente sente que, por mais que doa, ou que estejamos inseguros de que foi a coisa certa a se fazer, era a única maneira de manter vivo o nosso entusiasmo.
Na dúvida, o melhor é respirar fundo, observar o contexto e se atentar aos detalhes, a fim de entender para onde a vida está dirigindo o seu fluxo. Mesmo que isso signifique encerrar ciclos.
Hoje me dei conta de que a pequena aranha vermelha não está mais no meu banheiro. Ela se foi e eu nem percebi. Talvez a vida estivesse acelerada demais. Ou, talvez, a aranha já tivesse me ensinado o que ela tinha para ensinar e, por isso, parei de notá-la. O importante é que tivemos a nossa troca. Ela se abrigou e se alimentou. Eu aprendi um pouco mais sobre a existência e sobre mim mesma.
Realmente, não era uma aranha venenosa. Era remédio. Se bem que, segundo dizem, a diferença entre o veneno e o remédio está na dose. Felizmente a vida se encarregou de me oferecer a dose certa: uma pequena aranha e uma grande hóspede.
Ah… essa vida e sua magia!
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